quarta-feira, 29 de agosto de 2018

nada ficou no lugar



 Eu quero entregar suas mentiras
 Eu vou invadir sua alma 
Queria falar sua língua 
Eu vou publicar os seus segredos


 Eu vou derramar nos seus planos 
O resto da minha alegria 






Adriana Calcanhoto

terça-feira, 28 de agosto de 2018

amargos




Dormíamos nus 
no interior dos frutos

 É o que temos:
 sono e a estiagem subitamente
 até ao fim.

 Amargos.

 Pela humidade descia-se
 às fontes - lembro-me. 
Dos lábios.







 Eugénio de Andrade
 (Foto de Nishe)

terça-feira, 21 de agosto de 2018

.



para um ponto final falta apenas rasgar-te as
 cartas e os enganos







 Isabel Maria Mendes Ferreira

domingo, 19 de agosto de 2018

a idade é isto



Esse que em mim envelhece
 assomou ao espelho
 a tentar mostrar que sou eu. 
 Os outros de mim, 
fingindo desconhecer a imagem, 
deixaram-me a sós, perplexo, 
com meu súbito reflexo. 

 A idade é isto: o peso da luz 
com que nos vemos. 







 Mia Couto

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

braille



Houve uma criança em mim que amava o teu corpo
 e nele se escondia para estar só e ausente.
 E sabia então que a tua luz crua e firme
 calava a ira e ofuscava a discórdia 
que viviam outrora no interior dos quartos. 
Hoje, assim contigo, face a face, fecho as pálpebras 
e apenas com o tacto te sinto e reconheço.







 Fiama Hasse Pais Brandão

domingo, 12 de agosto de 2018

sábado, 11 de agosto de 2018

sábado à tarde



Terraços inúteis, varandas das traseiras, arrecadações, escadas de caracol, marquises desbotadas, antigas estufas, barracas, vasos partidos, paredes abertas, telhas, ferro-velho, andares vazios, degraus sem uso, o fosso do elevador, fechaduras de portões, gatos, cadeiras, um sol sem préstimo, ervas daninhas, um triciclo, humidade, silêncio, azulejos, sábado à tarde e o meu corpo. 







 Pedro Mexia

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

livros de poesia



Não tardará a chegar ao fim
 este agosto que te viu passar 
 com a luz a teus pés. 
 Somos eternos, dizias.
 Eu pensava antes na danação da alma
 ao faltar-lhe o alimento que lhe trazias.
 Agora a cidade
 vive do peso incomensuravelmente morto
 dos dias sem a tua presença. 
 Deixo a mão correr sobre o papel 
 tentanto captar o eco de uma palavra, um sinal, 
 e quem em qualquer parte cintila,
 e confia ao vento o segredo da nossa tão precária eternidade.






 Eugénio de Andrade

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

e não fique de tudo uma palavra



se a maldição for tanta e tão pérfida 
que eu te esqueça na morte, que eu te esqueça








 Fernando Assis Pacheco

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

olha-me como quem chove




Estendo na cama o corpo que há-de
 ser o porto a que esta noite vais chegar. 
 E entre névoas e ventos hei-de ver
 o barco dos teus dedos ancorar
 na margem mais secreta do desejo.
 E há-de haver um mapa ali por perto
 que te leve à enseada do meu beijo 
 e à fogueira de tudo o que está certo. 
 E na respiração da tua boca
 bebo o grito da terra sempre pouca
 para a noite em que ficarmos sós.
 Mas o corpo descansa apaziguado:
 sei que o sol já repousa do meu lado
 e que o teu rio já chegou à foz. 






 Alice Vieira

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

amar morrer



e depois
 amor quase a tristeza 

 e depois amor quase gritaste






 Fernando Assis Pacheco