segunda-feira, 30 de março de 2020

sexta-feira, 27 de março de 2020

tudo isto



Hoje, vieram buscar-me cedo.
 É a tal história, tiram-me do sono, 
 passam-me para a maca e
 ninguém quer saber das minhas vontades.
 Nem fui fazer chichi, nem me fizeram o buço. 
 Estou com o bordado da fronha estampado nas fuças 
e, com este péssimo aspecto, 
 fazem-me desfilar pelos corredores cheios de gente 
que acorda de madrugada
 e se põe bonita para vir aqui tirar fotografias
 a rins e pulmões. 
 Fora a vadiagem que só entra para aquecer os pés,  
estou eu, feita bicho, amarrada a uma etiqueta,
 como os cavalos na feira. 
 Por isso, puxo com os dois braços
 uma fralda que encontro por perto
 e enxugo o meu rosto pejado de medo, 
 porque tudo isto é mesmo uma merda, 
 mas depois melhora um pouco
 quando me enchem de morfina
 e me devolvem, à saída, o telemóvel. 






 Golgona Anghel
 (Foto de Monia Merlo)

quarta-feira, 25 de março de 2020

faz por esquecer


Esquece-te de mim, Amor, 
 das delícias que vivemos
 na penumbra daquela casa, 
 Esquece-te.
 Faz por esquecer 
 o momento em que chegámos, 
 assim como eu esqueço 
 que partiste,
 mal chegámos, 
 para te esqueceres de mim, 
 esquecido já
 de alguma vez 
 termos chegado. 






 António Mega Ferreira
 (Foto de Andrei Tarkovsky)

sábado, 21 de março de 2020

a tua ausência dói-me



Quem me vai ler poesia, 
 quem me vai escrever poesia, 
 quem me vai oferecer poesia, 
 quem me vai arrumar a poesia? 








 Inês Fonseca Santos

sexta-feira, 20 de março de 2020

não deixes nunca de sonhar



Não deixes que termine o dia sem teres crescido um pouco, 
 sem teres sido feliz, sem teres aumentado os teus sonhos.
 Não te deixes vencer pelo desalento. 
 Não permitas que alguém retire o direito de te expressares, 
que é quase um dever. 
 Não abandones as ânsias de fazer da tua vida algo extraordinário. 
 Não deixes de acreditar que as palavras e a poesia podem mudar o mundo. 
 Aconteça o que acontecer a nossa essência ficará intacta.
 Somos seres cheios de paixão.
 A vida é deserto e oásis. 
 Derruba-nos, ensina-nos, converte-nos em protagonistas de nossa própria história. 
 Ainda que o vento sopre contra, a poderosa obra continua: 
 tu podes tocar uma estrofe. 
 Não deixes nunca de sonhar, porque os sonhos tornam o homem livre. 







 Walt Whitman
 (Foto de Ezgi Polat)

quarta-feira, 18 de março de 2020

o tempo provisoriamente adiado



Vêm aí dias mais duros. 
 O tempo provisoriamente adiado 
 aparece já no horizonte.
 Em breve terás que laçar os sapatos
 e prender os cães nos quinteiros. 
 As entranhas dos peixes 
 terão arrefecido ao vento. 
 Já se apaga o fulgor dos tremoceiros. 
 O teu olhar sonda a névoa: 
 o tempo provisoriamente adiado
 aparece já no horizonte. 
 Ao longe a tua amada enterra-te na areia, 
 que lhe cobre os cabelos soltos, 
 lhe corta a palavra, 
 lhe ordena que se cale, 
 e a acha mortal
 e disposta ao adeus 
 depois de cada abraço.
 Não olhes para trás. 
 Aperta os sapatos.
 Corre com os cães. 
 Atira ao mar os peixes.
 Apaga os tremoceiros! 
 Vêm aí dias mais duros. 







 Ingeborg Bachman

sexta-feira, 13 de março de 2020

exercícios de preparação para a solidão



Perceber que já se perdeu tudo o que um dia mais se amou, 
fazer ordinariamente horas extraordinárias,
 ir a diário ao ginásio, esgotar o corpo,
andar frequentemente de bicicleta, 
regressar a casa pelo caminho mais longo,
 prestar atenção ao que acontece dentro da copa das árvores, 
não ter animais de estimação, nem mesmo plantas, 
ter coragem para não recolher um cão abandonado, 
nas tardes de sol visitar jardins, dar milho aos pombos, 
ser amante de livros, de música e de cinema, 
guardar longe da vista todas as fotografias, 
dançar pela casa, a vontade não precisa de par, 
evitar pensar no sentido da vida,
 ter um não sei quê de ave migratória, 
manter a casa limpa, mudar os lençóis, fazer a cama, 
ter em casa chá, chocolate e livros de poesia, 
peças de fruta, álcool e cigarros nenhuns, 
ter cola, tesoura, agulha, linha, pregos,
 o necessário para pequenas reparações, 
ter uma caixa de primeiros socorros,
 cozinhar em pequenas quantidades,
investir numa chaleira, 
numa botija para água quente,
num congelador, 
viajar sempre para países distantes, 
não ter medo da chuva nem do choro, 
não ligar a televisão só para ter luz no escuro. 







 Raquel Serejo Martins

terça-feira, 10 de março de 2020

um poema



E há memórias deste amor? 
A voz sem as palavras, um livro lido às escuras, 
um bilhete cifrado deixado num hotel, um velho calendário cheio de desencontros? 

Não, 
 não há memória deste amor






Maria do Rosário Pedreira

sábado, 7 de março de 2020

quinta-feira, 5 de março de 2020

um pássaro



Tenho um pássaro empoleirado no ombro, 
um pássaro-gémeo, um pássaro que nasceu comigo. 
Cresceu tanto, ficou tão pesado,
cada passo que dou é uma tortura. 

 Um peso morto, um peso morto, um peso morto sobre mim. 
Devia deitá-lo ao chão - é tenaz, 
as suas garras cravam-se no meu ombro 
como as raízes de um carvalho. 

 A um palmo do meu ouvido: o som 
do seu horrível coração de pássaro a palpitar. 
Se um dia levantar voo 
cairei logo por terra. 






 Àgnes Nemes Nagy
 (Foto de Laura Makabresku)

segunda-feira, 2 de março de 2020

rasto



Havia um homem na sua história. 
Claro que havia um homem. 
Nota-se na boca 






Ana Teresa Pereira