sexta-feira, 30 de outubro de 2015








(ás vezes isto é um poema diário, outras um diário poema)









Quando desapareceu o último porto de abrigo
 refugiei-me no lugar comum da tristeza 
a fechar feridas antigas a perdoar traições
 talvez um dia possa tentar tudo de novo 
com o despudor de todos os recomeços. 






 Carlos Alberto Machado
 (Foto de Anna O)

quinta-feira, 29 de outubro de 2015




queria que o meu amor morresse 
e a chuva chovesse sobre o cemitério
 e sobre mim pelas ruas onde eu andar
 chorando aquel(e) que julgou amar-me 






 Samuel Beckett

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Encontro (desencontro)




Ele não apareceu. 
 Talvez tenha adoecido ou ficado debaixo de
 um eléctrico. Talvez outra pessoa se pusesse na conversa com ele. 
Talvez se tenha esquecido do relógio, 
ou o relógio se tenha esquecido de lhe dar o tempo certo. 
Talvez o carro não pegasse, 
 ou tenha ficado avariado a meio do caminho. 
Talvez alguém lhe telefonasse quando ia a sair de casa, 
 dizendo-lhe que tinha de ir a um funeral 
ou que a mãe dele tinha morrido. 
Talvez tenha encontrado um antigo conhecido. 
Talvez tenha tido uma discussão no emprego, 
 tenha sido despedido e esteja a esconder
 a cabeça debaixo de uma almofada. 
Talvez a ponte estivesse fechada e
 a seguinte também. 
Talvez o semáforo permanecesse vermelho. 
Talvez o multibanco tenha engolido o cartão 
 ou a meio do caminho tenha reparado que se esquecera
 do porta-moedas. 
 Talvez tenha perdido os óculos,
 não conseguisse deixar de ler, 
houvesse um programa que ele queria acabar de ver, 
não conseguisse dar a volta à fechadura da porta,
 não encontrasse as chaves em sítio nenhum e 
o cão dele de repente começasse a vomitar. 
Talvez não houvesse um telefone por perto, 
não encontrasse o restaurante
 ou esteja à espera noutro sítio, por engano. 
 Talvez – a última possibilidade, 
incompreensível e inesperada – 
ele tenha deixado de me amar.


                                                                

                     (porque hoje precisei repetir este poema de que gosto tanto)




 Hagar Peeters

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Lista da minha espera




(não havia gelado de canela, não comprei um livro, e todos os nossos lugares estavam irremediavelmente  vazios)






domingo, 25 de outubro de 2015



Ainda bem que partes :
já me sobram mais afagos 
para o gato, mais espaço 
nas gavetas e nas horas; 
com os lenços que deixaste
 posso pôr em cacos limpos 
o restante coração. 

Ainda bem que partes: 
regresso menos cedo
 às arestas do lençol, 
acrescento um cobertor; 
divirto-me a escolher
 em que lado da parede 
não irei adormecer. 

 Ainda bem que partes; 
dura mais o sabonete, 
a graxa dos sapatos,
 o sal e o Domingo;
 só o gin, tem piada,
 dura menos.






 José Miguel Silva

sábado, 24 de outubro de 2015




deixou-me o corpo cheio 
de dedadas 
pouso os dedos nas dedadas que deixou 
venho-me agora senhor 






Bénédicte Houart
 (Foto de Natalia Drepina)

sexta-feira, 23 de outubro de 2015




Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado. 
Não fui amado pela única grande razão- 
Porque não tinha que ser.
 Consolei-me voltando ao sol ou à chuva, 
E sentando-me outra vez à porta de casa. 
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados 
Como para os que o não são. 







 Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)
 (Foto de Cristina Coral)

 (sento-me num lugar escuro e silencioso dentro de mim)



quinta-feira, 22 de outubro de 2015




Não preciso de silêncio, já não tenho em quem pensar 






 Atahualpa Yupanqui
(Foto de Natalia Drepina)

segunda-feira, 19 de outubro de 2015




Protege-me das sombras e do medo 
defende-me de todas as tristezas, 
desterra-me da vida o desconsolo
se possível, com o teu amor, se não, 
com o fim do mundo ou com a minha morte. 






Amalia Bautista
 (Foto de Natalia Drepina)

domingo, 18 de outubro de 2015




a dizer outra vez
 se não me ensinares eu não aprendo
 a dizer outra vez que há uma última vez
 mesmo para as últimas vezes
 últimas vezes em que se implora 
últimas vezes em que se ama 
em que se sabe e não se sabe em que se finge 
uma última vez mesmo para as últimas vezes em que se diz 
se não me amares eu não serei amado
 se eu não te amar eu não amarei
 palavras rançosas a revolver outra vez no coração
 amor amor amor pancada da velha batedeira
 pilando o soro inalterável 
das palavras

aterrorizado outra vez
 de não amar
 de amar e não seres tu 
de ser amado e não ser por ti
 de saber e não saber e fingir
 e fingir

eu e todos os outros que te hão-de amar 
se te amarem 






 Samuel Beckett
 (Foto de Nishe)

sábado, 17 de outubro de 2015




 da compra, da venda. das trocas, das pernas. dos braços. das bocas. do lixo. dos vícios. da cama. 
 dos olhos enxutos. da brasa dos brutos. dos dentes rangendo. 
sou carta marcada. sou jogo de azar. 
sou Ana obrigada 






 Chico Buarque (Ana de Amsterdam)
 (Foto de Natalia Drepina)

sexta-feira, 16 de outubro de 2015




Não há corda que se torça mais do que esta, 
a que estrangula o meu coração. 






 Marta Chaves

quinta-feira, 15 de outubro de 2015




Feliz aquele que administra sabiamente a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias. 






 Ruy Belo
 (Foto de Natalia Drepina)

quarta-feira, 14 de outubro de 2015




E aqui estou à espera  
 - com este destino
 de dar sombra aos muros
 Mas à espera de quê? 
 Que o despenhar no abismo 
me crie enfim asas? 






 José Gomes Ferreira

terça-feira, 13 de outubro de 2015




É apenas isso. Dorme. Talvez amanhã, 
 subitamente, o mundo nos pareça perdoável. 





 Manuel de Freitas



Julgava que te tinha dito adeus, 
um adeus contundente, ao deitar-me, 
quando pude por fim fechar os olhos, 
esquecer-me de ti, dessas argúcias, 
dessa tua insistência, teu mau génio,
 tua capacidade de anular-me. 
Julgava que te tinha dito adeus
 de todo e para sempre, mas acordo, 
encontro-te de novo junto a mim,
 dentro de mim, rodeias-me, a meu lado, 
invades-me, afogas-me, diante 
dos meus olhos, em frente à minha vida, 
por sob a minha sombra, nas entranhas, 
em cada golpe do meu sangue, entras
 por meu nariz quando respiro, vês 
pelas minhas pupilas, lanças fogo
 nas palavras que minha boca diz.
 E agora que faço?, como posso
 desterrar-te de mim ou adaptar-me
 a conviver contigo? Principie-se
 por demonstrar maneiras impecáveis.
 Bom dia, tristeza 






 Amalia Bautista

segunda-feira, 12 de outubro de 2015




Hoje dói-me pensar, 
 dói-me a mão com que escrevo, 
dói-me a palavra que ontem disse 
e também a que não disse, 
dói-me o mundo. 
 Há dias que são como espaços preparados
 para que tudo doa. 
 Só Deus não me dói hoje. 
Será porque ele não existe? 






 Roberto Juarroz

domingo, 11 de outubro de 2015




Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém 






 Maria Gabriela Llansol
(Edward Hopper)

sexta-feira, 9 de outubro de 2015




Há olhos que só olham o sonho; e, quando
 o sonho se dissipa, ficam cegos. 






 Nuno Judíce
(Foto de Natalia Drepina)

quinta-feira, 8 de outubro de 2015




ela despe-se no paraíso 
da sua memória 
ela desconhece o destino feroz 
das suas visões 
ela tem medo de não saber nomear 
o que não existe 






 Alejandra Pizarnik
 (Foto de Marian Sitchinava)

quarta-feira, 7 de outubro de 2015




Caminho sem pés e sem sonhos 
só com a respiração e a cadência 
da muda passagem dos sopros
 caminho como um remo que se afunda. 






 Daniel Faria

terça-feira, 6 de outubro de 2015




Tenho medo de ver-te
 necessidade de ver-te
 esperança de ver-te
 insipidezes de ver-te 
 tenho vontade de encontrar-te
 preocupação de encontrar-te
 certeza de encontrar-te
 pobres dúvidas de encontrar-te 
 tenho urgência de ouvir-te 
 alegria de ouvir-te 
boa sorte de ouvir-te
 e temores de ouvir-te
 ou seja
 resumindo
 estou fodido 
e radiante
 talvez mais o primeiro 
que o segundo
 e também vice-versa. 







 Mario Benedetti

segunda-feira, 5 de outubro de 2015




Reparaste como o Outono este ano veio por outro lado, 
como se fosse pelo lado de dentro? 






Manuel António Pina
 (Foto de Monia Melro)




ma·so·quis·mo
substantivo masculino
  Atitude de uma pessoa (ou de um povo) que retira prazer ou parece gostar do seu sofrimento ou humilhação





 in Dicionário  da Língua Portuguesa 

sábado, 3 de outubro de 2015




No primeiro dia que saí contigo 
disseste que o teu trabalho era estranho. 
Mais nada. Todavia, eu sentia
 a pele a rasgar-se como trapos 
de cada vez que me tocavas com a mão. 
E os teus olhos pareciam-me punhais
 a fazer-me doer os meus. 
Daí para a frente foi sempre a mesma coisa: 
tu orgulhavas-te da tua arte,
 mais subtil e directo em cada dia
 e eu nunca percebia nada. 
Mas agora sei. 
Já conheço o teu ofício: 
Atirador de facas. 
A mais certeira atiraste-ma ao coração. 






 Amalia Bautista

sexta-feira, 2 de outubro de 2015




Tenho o nome de uma flor 
 quando me chamas.
Quando me tocas, 
nem eu sei 
 se sou água, rapariga, 
 ou algum pomar que atravessei.






 Eugénio de Andrade
 (Foto de Nishe)

quinta-feira, 1 de outubro de 2015




se um dia voltares
(francamente eu sei)
eu já não te espero
será que ando forte
e que te esqueci
será que ando fraco
e que me perdi





(algumas musicas,alguns poemas e algumas pessoas
 desarrumam-me o coração)



Eu sei que não virás. O quarto 
 seria este, estes os meus braços, aquela
 a jarra com as flores. 

Sabes o que é o amor? Poder e não poder
 dizer o teu nome sem que me rebente 
 dentro do estômago, dos intestinos, dos pulmões 
a faca de infecções de que poderei morrer. 






 Joaquim Manuel Magalhães