sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

foda-se



Livra-me das tentações 
 de fugir ao fisco 
e que em Fevereiro pague sempre 
os meus impostos. 
Afasta-me do supérfluo e 
da vaidade e recorda-me que 
um dia hei-de ter hemorróidas. 
E não me deixes cair no pecado 
da ideologia
 para que não leve com o proletariado nas trombas.
 Guia-me pelos caminhos do amor
 até um centro comercial 
onde o amado me acompanhará
 a experimentar um a um cada vestido. 
E, por último, faz com que
 todo o iogurte que coma seja
 — foda-se! — 
de morango. 





 Ana Paula Inácio

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Ainda sei o nome da tua rua




Ainda sei a tua morada, quando a releio no soletro dos números e sonetos, confundo-a de encontro aos atalhos do meu coração.
Quanto mais te escrevo, de lugares e quereres divergentes, de saberes e deveres indiferentes,
mais o gasto da memória se disfarça devagarinho na sola dos teus sapatos.




 Alice Turvo

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

O voo duma guitarra





Telefonema


Telefonaram-lhe para casa e perguntaram-lhe se estava em casa. 
Foi então que deu pelo facto. Realmente tinha morrido havia já dezassete dias.
 Por vezes as perguntas estúpidas são de extrema utilidade. 





 Mário Henrique Leiria

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Abandono


eu uno-me ao silêncio
 eu uni-me ao silêncio
 e eu deixo-me fazer 
deixo-me beber 
deixo-me dizer 




 Alejandra Pizarnik
 (Foto de Katia Chausheva)

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Ás vezes chamam-lhe paixão



É apenas o começo. 
Só depois dói, e se lhe dá nome. 




 Eugénio de Andrade

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Tu não existes


Às vezes, nos momentos trágicos, já não é contigo que eu deparo - é com outro ser que assiste sempre, como um espectador, a todos os meus exageros.
 Deitavas-te comigo, levantavas-te comigo, ferrada como um punhal - e não existias. 
Neguei-te. Expliquei-te. Reduzi-te às tuas verdadeiras proporções - e tu não existias! Atormentaste-me e fizeste-me sofrer mesmo quando já compreendera que não existias. 
E agora mesmo, quando o universo é outro universo, ainda encarniças sobre em mim como um fantasma. 
 Escusas de te rir - tu não existes. 




 Raul Brandão

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Os passos em volta


Uma vez fui a um médico.
 - Doutor, estou louco. - disse. - Devo estar louco.
 - Tem loucos na família? - perguntou o médico. - Alcoólicos, sifilíticos?
 - Sim, senhor. O pior. Loucos, alcoólicos, sifilíticos, místicos, prostitutas, homossexuais. estarei louco? 
O médico tinha sentido de humor, e receitou-me barbitúricos.
 Não preciso de remédios - disse eu. - 
 Sei histórias tenebrosas acerca da vida. 
 De que me servem barbitúricos?




 Herberto Helder

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Regar as flores de plástico


Voltar ao fim. 
Pintar três vezes o sete: 
ficar doido. 




 Mario Cesariny

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Escrito num muro


Nu sonhando uma noite solar.
 Sepultei dias animais. 
O vento e a chuva me apagaram
 como a um fogo, como a um poema 
escrito num muro 




 Alejandra Pizarnik

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

O lugar onde me escondo


procura-me por todos os lados, procura-me às escuras por todos os lados, 
estarei algures, fremindo, criando bichos entre
 os braços e as pernas, aguardando que
 me salves. só assim te amarei, se souberes 
descortinar o caminho para o lugar onde
 me escondo, com medo, com fantasmas,
 feito para ser amado apenas por quem, 
avistando-me no fundo do poço, me
 puder querer sem garantia de outra condição. 





Valter Hugo Mãe
(Foto de Katia Chausheva)

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Os dias sem ninguém


pequeníssimos recados escritos à pressa 
amachucados nos dedos 




 Al Berto

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Alfabeto dos dias


Quem anda nos meus olhos
 A querer salvar o mundo 
 Com espadas de lágrimas?




 José Gomes Ferreira

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Por que esperas?


Sou o comprimido calmante.
 Actuo em casa, 
sou eficaz na repartição, 
sento-me no exame,
 apresento-me em tribunal, 
colo minuciosamente a louça partida. 
Basta que me tomes, 
que me ponhas debaixo da língua, 
que me engulas
 com um copo de água. 
 Sei o que fazer na desgraça, 
como aguentar a má notícia, 
diminuir a injustiça,
 desanuviar a falta de Deus,
 escolher o chapéu de luto a condizer. 
Por que esperas? 
Confia na piedade química. 





 Wislawa Szymborska

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Previsão do estado do corpo para hoje


Chove Chove Chove Chove Chove Chove Dói Chove Chove Chove Dói 
Chove Chove Dói Chove Chove Dói Chove Chove Chove Dói Chove Chove Chove 





 Patrícia Reis

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Vou contar uma história


Havia uma rapariga que era maior de um lado que do outro. Cortaram-lhe um pedaço do lado maior: foi de mais. 
Ficou maior do lado que era dantes mais pequeno. Cortaram. Ficou de novo maior do lado que era primitivamente maior. Tornaram a cortar. Foram cortando e cortando. O objectivo era este: criar um ser normal. 
Não conseguiam. A rapariga acabou por desaparecer de tão cortada nos dois lados. 





 Herberto Helder

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Mendiga voz


E ainda me atrevo a amar
 o som da luz numa hora morta 
a cor do tempo num muro abandonado. 

 No meu olhar perdi tudo. 
É tão longe pedir. Tão perto saber que não há. 




 Alejandra Pizarnik

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Essa menina


Um domingo de tarde sozinha em casa dobrei-me em dois para a frente
 - como em dores de parto - 
e vi que a menina em mim estava morrendo. 
Nunca esquecerei esse domingo. Para cicatrizar levou dias.
 E eis-me aqui. Dura, silenciosa, heroica. 
Sem menina dentro de mim.





 Clarice Lispector

sábado, 1 de fevereiro de 2014



para lá de qualquer zona proibida 
há um espelho para a nossa triste transparência 





 Alejandra Pizarnik