quarta-feira, 29 de março de 2023

meu amor, meu amor




Eu esperava por ti, tu não vinhas 
Tardavas 
e eu entardecia






 Ary dos Santos
 (Foto de Laura Makabresku)

domingo, 26 de março de 2023

sobrevivi






 

Os primeiros beijos
 ingénuos, comedidos, cautelosos,
 os corpos indecentemente jovens, 
desastrados como caranguejos, 
a cozinha suja, o pequeno-almoço na cama, 
cigarros, cerveja, pão turco e tulipas turcas. 

 Passaram mil madrugadas, 
o amor jaz na ausência, 
como se o coração perdesse a paciência, 
como se o corpo perdesse a memória, 
as flores secas, as folhas secas, as raízes secas,
  devolveu-me ao mar como se fosse um peixe, 
um peixe ferido, um peixe incapaz de sobreviver, 
pequenos homicídios sem consequências. 

 Sobrevivi, 
sei que me desmereço mas não sou o que pareço, 
agora sou toda janelas, 
da torre a sentinela, do sino a capela, da rua a cadela, 
sou o morro mais alto da favela, 
ainda quero entender o mundo, 
ainda quero conhecer o fundo,
 quero com desespero, 
quero mas não sei o que quero, 
mais feitio que defeito, 
mais feito que derrota, 
mais gaivota que proveito,
 mais ignota que perfeito,
 mais pé-direito que respeito, 
e podem chamar-me pedante,
 mas as pessoas que sabem o que querem 
nunca querem nada de interessante







 Raquel Serejo Martins
(Foto de Monia Merlo)

terça-feira, 21 de março de 2023

a poesia



Foi nessa idade que a poesia me veio buscar 
Não sei de onde veio 
Do inverno, de um rio 
Não sei como nem quando 
Não, não eram vozes 
Não eram palavras 
Nem silêncio 
Mas da rua fui convocado 
Dos galhos da noite
 Abruptamente entre outros
 Entre fogos violentos 
Voltando sozinho
 Lá estava eu sem rosto 
E fui tocado. 






 Pablo Neruda
 (Foto de Nishe)

quinta-feira, 16 de março de 2023

quartos de hotel



 

Dias de inverno
 noites de bares
 ilustres desconhecidos
 músicas que não sabes dançar
 garrafas vazias
 quartos de hotel 
camas impecavelmente feitas 
para corações desfeitos. 






 Raquel Serejo Martins

terça-feira, 14 de março de 2023

faz sentido


Às vezes apetece-me oferecer-te um presente 
Mas nem sempre calha 
E quando calha é quase sempre
 aparentemente insignificante









Jorge Palma

segunda-feira, 13 de março de 2023

pedaços de coisas



 

Às vezes penso que vou encontrar-te na rua mais improvável, 
que nos sentamos diante do rio e 
ficamos a trocar pedaços de coisas subitamente importantes : 
a tua solidão, por exemplo






 Vasco Gato

terça-feira, 7 de março de 2023

a ausência é uma forma do inverno





assim dói uma noite, 
 com esse mesmo inverno de quando tu me faltas, 
com essa mesma neve que me deixou em branco,
 pois de tudo me esqueço 
 se tenho de aprender a recordar-te









Luis Garcia Montero

quarta-feira, 1 de março de 2023

os dias





As minhas palavras exigem silêncio
 e espaços abandonados





Alejandra Pizarnik