quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Mas


deixa, por favor, ao meu corpo
o direito absoluto aos teus vinte anos
ao primeiro beijo, ao primeiro cigarro
ao indeciso movimento dos teus dedos
desabotoando a minha blusa.


Alice Vieira

terça-feira, 30 de outubro de 2012

 


Como é perversa a juventude do meu coração
Que só entende o que é cruel, o que é paixão


Zé Ramalho

Perto do Coração Selvagem


Um dia, depois de viver sem tédio muitos iguais, viu-se diferente de si mesma. Estava cansada. Andou de um lado para outro. Ela própria não sabia o que queria. Pôs-se a cantar baixinho, com a boca fechada. Depois cansou-se e passou a pensar em coisas. Mas não o conseguia inteiramente. Dentro de si algo tentava parar. Ficou esperando e nada vinha para ela. Vagarosamente entristeceu de uma tristeza insuficiente e por isso duplamente triste. Continuou a andar por vários dias e seus passos soavam como o cair de folhas mortas no chão. (...)
 Na verdade ela sempre fora duas, a que sabia ligeiramente que era e a que era mesmo, profundamente.


  Clarice Lispector

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Não te esqueças que o vento ajuda a voar

 



Henrique Risques Pereira

Quase


Quase, é uma palavra notável. Todas as pessoas deviam ter por nome próprio quase. Eu sou quase, tu és quase, ele é quase, nós somos quase. Quase qualquer coisa que não chega a ser quase. Uma equação quase perfeita. Um número quase redondo que só existe dentro das nossas cabeças ligadas por fios primorosos. Fios de aço que amarram a loucura e a mantêm obediente. Não pretendas ser mais. As lágrimas que te escorrem pela cara desenham traços de temperatura variável. Continuam a surgir frases por escrever, amores inacabados. O amor é sequioso como uma planta. O melhor é a água. Não há outra maneira. A felicidade é coisa que acontece tarde. Da qual só se tem notícia depois de ter sido. Quando alguém clama: sou feliz, está a preparar-se para a desgraça. Imensas são as coisas que só existem no tempo passado. Não há vagas, quer no inferno, quer no paraíso. Suceder já quer dizer sucedido, porque triunfar é um verbo a morrer. Há em mim qualquer um que tem saudades de si. Saudades imperiosas, bruscas, inevitáveis. Continuo a ignorar para onde foi o que fui, em que casas acordam as pessoas que amei. Dói quase. Assim, sempre assim. Uma espécie de distância que não pode ser percorrida


Pedro Paixão

domingo, 28 de outubro de 2012

sábado, 27 de outubro de 2012

Poemas perfeitos em noites escuras


(...)
Senhor, permite que adormeçamos
antes que feches a luz e desça
sobre nós a tua escuridão,
que os rebanhos estejam recolhidos
e os credores se tenham afastado da nossa porta,
mas que tenhamos pago as dívidas aos que nos serviram
e aos que nos amaram e aos que nos esperaram;
as tuas grandes mãos sustentarão o telhado e as paredes,
e moerão o grão e fermentarão o trigo,
apaga com as tuas mãos para sempre o rasto
da nossa vida
e que repousemos enfim
sem motivo para nos culparmos
por não termos sido felizes.


Manuel António Pina

terça-feira, 23 de outubro de 2012

O regresso à escrita terminou


 a vida toda fodida -
e a alma esburacada por uma agonia do tamanho deste mar.
 

Al Berto

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Sou eu quem te chama



E moro em ti e sou eu o lugar
e demoro-me em ti e sou o tempo.
 
 
Manuel António Pina

domingo, 21 de outubro de 2012

Era um homem que gostava de palavras


(...)
Falta alguém, não sei quem,
foi cortar o cabelo e só voltou
oito dias depois, já o
jantar tinha arrefecido.
E fico de novo sozinho,
na cama vazia, no quarto vazio.
Lá fora é de noite, ladram os cães;
e cubro a cabeça com os lençóis.


Manuel António Pina

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Isto é o meu corpo


O corpo tem degraus, todos eles inclinados
milhares de lembranças do que lhe aconteceu
tem filiação, geometria
um desabamento que começa do avesso
e formas que ninguém ouve
O corpo nunca é o mesmo
ainda quando se repete:
de onde vem este braço que toca no outro,
de onde vêm estas pernas entrelaçadas
como alcanço este pé que coloco adiante?
Não aprendo com o corpo a levantar-me,
aprendo a cair e a perguntar.


José Tolentino Mendonça

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Das manhãs


Saio da cama pela fenda do lençol e fecho-a sobre ti. Toco o chão ao de leve, como uma ave repousa na pele das ondas. Visto-me às escuras _ tão mais discreta a blusa do avesso, a saia tão distraída nas costuras. Vou para a cozinha de sapatos na mão e escrevo-te um bilhete: deixei-te um beijo sobre a tua almofada antes de sair.
 Não preciso assinar


Maria do Rosário Pedreira

terça-feira, 16 de outubro de 2012

O amor em visita


Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água


 
Herberto Helder

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Insónia


A minha boca é uma chaga
O meu trabalho é o silêncio
Eu e a noite dormimos juntos
e nunca dormimos


Carlos Edmundo de Ory

sábado, 13 de outubro de 2012

Fogo posto


As vezes ardem-me os poemas
na ponta dos dedos,
como um incêndio


Alexandra Malheiro

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Meia noite


Deste-me a intempérie, a leve sombra da tua mão a passar pela minha cara.
  Deste-me o frio, a distância, o café amargo da meia-noite entre mesas vazias.


Julio Cortazar

Dia do (meu) Nobel da literatura

 
 
 
 

terça-feira, 9 de outubro de 2012

O que dói


Sempre amei por palavras muito mais
do que devia
são um perigo
as palavras
quando as soltamos já não há
regresso possível
ninguém pode não dizer o que já disse
apenas esquecer e o esquecimento acredita
é a mais lenta das feridas mortais
espalha-se insidiosamente pelo nosso corpo
e vai cortando a pele como se um barco
nos atravessasse de madrugada
e de repente acordamos um dia
desprevenidos e completamente
indefesos
um perigo
as palavras
mesmo agora
aparentemente tão tranquilas
neste claro momento em que as deixo em desalinho
sacudindo o pó dos velhos dias
sobre a cama em que te espero


Alice Vieira

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Mas chegarei


Não sei como entrar no teu bairro na tua vida,
a tua vida de puzzles e de palmeiras,
o teu bairro de lata e de armaduras.
Não sei como ir da minha vida à tua rua,
a tua rua cheia de perguntas,
a minha vida estranha sem respostas.
Mas chegarei.
 Porque tu me chamas.


Belén Sánchez