quarta-feira, 31 de julho de 2013

Uma casa


Disse-te: uma casa.
Não falávamos há meses e isto
foi tudo o que te soube dizer:
uma casa, tenho uma casa.
Arrumei primeiro os discos, depois os filmes,
só então os livros, as loiças.
Como quem se abrigasse da chuva,
pendurei os primeiros quadros.
Quatro: estrada, mar, mulher, coração.
Começou a chover quando me perguntaste
se te convidava para jantar.
Era desnecessariamente Julho
e dentro de casa chovia tanto.
Disse-to, confesso, sem esperança
- apenas porque uma casa
é muito grande para guardar na boca.




Filipa Leal

terça-feira, 30 de julho de 2013

O nome do teu corpo


Com um pedaço de carvão
com meu giz quebrado e meu lápis vermelho
desenhar teu nome
o nome da tua boca
o signo das tuas pernas
na parede de ninguém
Na porta proibida
gravar o nome do teu corpo
até que a lâmina da minha navalha
sangre
e a pedra grite
e o muro respire como um peito




Octavio Paz

segunda-feira, 29 de julho de 2013

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Do lado esquerdo


Às vezes, pequenos grandes terremotos
  ocorrem do lado esquerdo do meu peito.
  Fora, não se dão conta os desatentos.
Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.
Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos.
  Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.




Affonso Romano de Sant’Anna

terça-feira, 23 de julho de 2013

Escrever



tinha de escolher uma forma de arder.
 escolho esta.
assim foi
assim é
assim será
até que de mim não reste mais que
meia dúzia de palavras indecifráveis




  Al Berto (Diários)

sábado, 20 de julho de 2013

Vendavais


Tapas os caminhos que vão dar a casa
  Cobres os vidros das janelas
  Recolhes os cães para a cozinha
  Soltas os lobos que saltam as cancelas
Pões guardas atentos espiando no jardim
Madrastas nas histórias inventadas
Anjos do mal voando sem ter fim
Destróis todas as pistas que nos salvam
Depois secas a água e deitas fora o pão
Tiras a esperança
  Rejeitas a matriz
 
  E quando já só restam os sinais
Convocas devagar os vendavais




Maria Teresa Horta

terça-feira, 16 de julho de 2013

Caladas coisas


Meu pescoço se enruga.
Imagino que seja
  de mover a cabeça
para observar a vida.
E se enrugam as mãos
cansadas dos seus gestos.
E as pálpebras
apertadas no sol.
Só da boca não sei
o sentido das rugas
se dos sorrisos tantos
ou de trancar os dentes
sobre caladas coisas.




Marina Colasanti

segunda-feira, 15 de julho de 2013

As coisas do corpo


Demasiado internas para lhes conhecermos os contornos.
Demasiado ocultas para lhes saber as razões.
Ostensivas, as coisas do corpo exibem-se perfeitas. Segundos
em que cheguei a odiá-las. Estavam demasiado longe
dos lugares a que devíamos regressar quando eu envelhecesse.
Puxei-te pela mão. A mão soltou-se do teu corpo.
Coloquei-a no lugar do coração; com as unhas
construí um fecho novo para o colar de pérolas;
vendi a pele e voltei a encher o frigorífico.
Alguém se sentou à mesa. Tinha o teu nome gravado;
um rosto sem marcas, irreconhecível,
aguardava a mão capaz de lhe levar coisas à boca.
Coisas de alimento às coisas do corpo. Como esta mão a bombear-te
o coração do lado errado do peito




Inês Fonseca Santos

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Acqua


Eu vivo por detrás de tudo isto e tenho um pacto com a água:
deixo que seja ela a beber-me nos dias em que tremo de medo.




Patrícia Baltazar

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Encontro


Do fundo do sonho uma mão me estendes. Uma mão cortada que me acaricia e foge. Eu busco-a sem pressa pelos cantos e livros. Encontro só lábios, estações, cigarros, crianças a despedir-se, umas gotas de sangue. Pelo fundo do sonho afastas-te devagar. Quero gritar teu nome, mas não sei quem és. Na rua deserta, ao dobrar a esquina, viras-te a olhar-me e sou eu quem me olha.




José Luis García Martín

terça-feira, 9 de julho de 2013

Vogais do silêncio


afogar-se
às vezes é morrer
em líquidas palavras
que nunca dizemos.




Silvia Chueire

domingo, 7 de julho de 2013

Sou eu aqui em mim

 

Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
  Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.




Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

sexta-feira, 5 de julho de 2013

42 graus

 

Desliza-me na pele
o fio incandescente dos teus dedos,
que eu entrarei de frente
pelo sol,
e arderei no sol,
sem medo -




Ana Luísa Amaral

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Era uma vez…

 

Sento-me à mesa de trabalho. Inclino a cabeça para a memória dos livros que li e amei.
Com um gesto de ave pouso a mão sobre o papel.
  E no interior da sombra da mão, começo a escrever: era uma vez…




Al Berto

terça-feira, 2 de julho de 2013

Dias assim

 

Este ministro é um mentiroso
que agonia quando ele discursa
e se fosse só isso: bale sem jeito
às meias horas seguidas – e não pára!
bem-aventurados os duros de ouvido
a quem o céu abrirá as portas
desliguem p.f. o microfone
ou então tirem o país da ficha



Fernando Assis Pacheco

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Noite dentro


fala-me das tuas mãos,
por elas passa o meu destino,
a direção clara do meu corpo.
fala-me dos teus gestos,
de como serão os desenhos que farás
para que estendidas as linhas
eu caminhe sobre elas
fala-me das mil mortes que te habitam,
uma a uma.
do teu desespero em linha reta,
agudo a rasgar-te a carne.
fala-me de todas as palavras
que precisas me falar,
de todas as palavras que escrevestes.
fala-me com ênfase,
se não tiveres mais nada a dizer,
de como se esquece um grande amor.
fala-me dessa fratura.



Silvia Chueire