quarta-feira, 30 de junho de 2021

podem cortar-me o coração que eu vivo



 

Aproxima-te.
Preciso dos teus olhos acesos para não me despenhar no vazio. 
Para não ter frio 






Daniel Faria

segunda-feira, 28 de junho de 2021

confissão


Sou de chorar: lugares comuns em filmes irrelevantes; actos de heroísmo vendáveis em múltiplos; sofrimentos com rosto; inteligências ou sensibilidades incompreendidas; solidões; abandonos (a mesma coisa – uma solidão mesmo empenhada, é sempre um abandono, muitos); memórias irrepetíveis e os seus ecos (the way we were, still crazy after all these years, formulações sintéticas em cançonetas); o sexo como entrega/abandono/achamento/epifania – as melhores lágrimas, as mais confusas, inexplicáveis, totais. Sermos livres dá vergonha por sermos presos. Na mesma medida em que sermos presos dá vergonha por sermos livres. As mulheres têm vergonha de ser homens. Os homens têm vergonha de ser mulheres. Todos temos vergonha de sermos pessoas. Humanos. Só. Completamente. E, lá no fundo, sabemos quem pôs em nós essa vergonha – o sacana que não conseguimos deixar de amar mais do a nós próprios. Um nome que é toda (um)a tesão. Deus. E que, para mim, tem o teu rosto, tuas mãos, teus pés, teus joelhos, tua nuca, teu cuspo, tua merda, o teu olhar perdido no horizonte, uma melodia que se apoderou dos meus ouvidos e do meu cérebro como se vinda ininterruptamente dos teus lábios, que me perseguem como um cão misterioso. Foda-se – desculpem-me – mas é a isto que se chama Amor! 






Miguel Martins

quarta-feira, 23 de junho de 2021

quotidiano




Então, 
 de todo amor não terminado
 seremos pagos 
 em inumeráveis noites de estrelas. 
 Ressuscita-me,
 nem que seja só porque te esperava 
 como um poeta, 
 repelindo o absurdo quotidiano! 






 Vladimir Maiakovski

segunda-feira, 21 de junho de 2021

soneto menor à chegada do verão






Eis como o vento
chega de súbito,
com seus potros fulvos,
seus dentes miúdos,

seus múltiplos, longos
corredores de cal,
as paredes nuas,
a luz de metal,

seu dardo mais puro
cravado na terra,
cobras que despertam
no silêncio duro

Eis como o verão
entra no poema.




Eugénio de Andrade


quinta-feira, 17 de junho de 2021

os dias adiados



 

Pesar-me. Ter sessenta quilos
 e perguntar porquê. Silêncio de balança. 
Porque sinto o peso daquilo que me cansa 
o mundo que se expande na cabeça 
os dias adiados, longos anos
 a lentidão que avança com os anos
 a respiração, o esforço de viver
 para cima quando tudo está a ceder. 
Porque dentro peso muito. E ao contrário
 da força de atracção do corpo pela terra. 







 Carlos Poças Falcão
 (Foto de Ezgi Polat)

sábado, 12 de junho de 2021

tom waits



 

Make it rain, disse ele. 
E as estrelas de Paris obedeceram







 Manuel de Freitas

terça-feira, 8 de junho de 2021

limites



 

Pela janela que amanhece retira-se a noite
 e entre os livros empilhados que lançam sombras
 irregulares na mesa difusa, 
deve haver um que eu jamais lerei.






Jorge Luis Borges

sábado, 5 de junho de 2021

espera





 

( estou inventando uma língua para dizer o que preciso) 





Ana Martins Marques

quarta-feira, 2 de junho de 2021

direito de escolha



 

era uma daquelas alturas em que hesitamos
entre conduzir directamente contra o poste
 ou pedir mais uma cerveja
 e deixar passar o impulso






 Rosa Oliveira