sexta-feira, 31 de março de 2017

É março ou abril?




É um dia de sol 
 perto do mar, 
 é um dia 
 em que todo o meu sangue
 é orvalho e carícia. 






 Eugenio de Andrade

quinta-feira, 30 de março de 2017




Como se eu fosse o lume e tu fosses a chama







 António Feijó

quarta-feira, 29 de março de 2017




A comprida, vagarosa língua da morte
 lambeu a mão daquele que escreve, 
lucidez ou loucura, ninguém sabe; 
só restam palavras, palavras roídas. 







 Juan Luís Panero

terça-feira, 28 de março de 2017

esperar




(...) 
tenho a certeza de que parto para sempre 
não haverá regresso nenhum
 creio que se tornaria mais fácil escrever-te de longe 
na deambulação por algum país cujo nome ainda não me ocorre
 num país com sabor a tamarindos rodeados de mar 
onde flores mirrassem ao entardecer e devagar
 a paixão nascesse durante o sono
 um país um pouco maior que este quarto
 fingiria escrever-te para te enviar a minha nova morada
 poderia assim queimar os dias no desejo de receber noticias
 inventaria mesmo desculpas plausíveis
 greves dos correios inexistentes terríveis epidemias
 catástrofes
 e na espera duma carta acabaria por me embebedar
 beber muito e esperar 
esperar
 digo tudo isto mas já não te amo
 (…)







 Al Berto

segunda-feira, 27 de março de 2017




Perdi o caminho
 e erro ao acaso. 
 Quero o que não tenho, 
 e tenho o que não quero







 Rabindranath Tagore
 (Foto de Anka Zhuravleva)

sábado, 25 de março de 2017

o meu amor é um íman na porta do frigorífico




Senta-te e limpa os lábios. 
Acende cada uma das lâmpadas
 Dos meus olhos, 
 Passa a tua mão, a mais nova, 
 Sobre a minha testa. 

 Deixa-me com a noite colada às têmporas, 
 Crisálidas saindo pela boca 
 Como um deus egípcio; 
Quando a manhã chegar 
 Mil anos de terra e esquecimento
 Tornar-me-ão amante por superstição, 
 Aquele que por medo evocarás
 Quando passeares o cão no jardim. 

 Antes de partires deixa o mapa, 
 Em rima cruzada, suspenso 
 Na porta do frigorífico.
 O amor não é um íman. 








Nunes da Rocha

terça-feira, 21 de março de 2017

a poesia




De que vale tentar reconstruir com palavras 
O que o verão levou
 Entre nuvens e risos 
Junto com o jornal velho pelos ares 

O sonho na boca, o incêndio na cama, 
o apelo da noite
 Agora são apenas esta
 contração (este clarão)
 do maxilar dentro do rosto. 

 A poesia é o presente. 








 Ferreira Gullar
 (Foto de Mariam Sitchinava)

segunda-feira, 20 de março de 2017




Há lugares onde esperar a primavera
 como tendo na alma o corpo todo nu. 








 Herberto Helder
 (Foto de Nishe)

quinta-feira, 16 de março de 2017




A imobilidade era o seu domínio. 
Durante todo o tempo
 não dera um passo
 não esboçara um único movimento. 
Alguns animais selvagens são
 assim perante a morte
 e o perigo. 








 João Miguel Fernandes Jorge
 (Foto de Nishe)

quarta-feira, 15 de março de 2017




Deixo o corpo à sombra da flor mais alta 
Ao redor de uma lâmpada
 Apagada. Acendo a morte. 
Sou um fio a prumo, uma nuvem 
Que passa 
Uma casa aberta e fechada








 Daniel Faria

terça-feira, 14 de março de 2017




Há dias assim. Dias em que não acontece nada porque estamos surdos. 
Dias em que não acontece nada porque estamos cegos. Dias em que nada saboreamos. 
Nesses dias, não acontece nada porque não o merecemos.







Bénédicte Houart

segunda-feira, 13 de março de 2017

fazes-me falta



A vida consiste nisso mesmo: em que nos usemos, da melhor maneira que pudermos. 
 Usei-te eu como devia? 
 Porque me sobras tanto, ainda?







 Inês Pedrosa

domingo, 12 de março de 2017




Brinca comigo às escuras,
 ensina-me o que não sei 
Onde estás? Porque procuras
 o coração que te dei? 






 Fernando Pinto do Amaral

sábado, 11 de março de 2017

casa





Um corpo é sempre a morte que regressa, 
 mas o teu é o lugar onde a esqueço. 






 Rui Nunes

sexta-feira, 10 de março de 2017




Müller, 
Café Müller. 

 A morte sabe onde fica. 






 Manuel de Freitas

quarta-feira, 8 de março de 2017




Esqueci-me como se ama furiosamente. não venhas ter comigo. sobretudo hoje que tanto tenho pensado em ti. não venhas.
 só na ausência ainda consigo desejar-te. se aqui vieres será um dia terrível para mim. terei de fingir, de enganar-me.
 quando estás não te amo, ou amo-te tão intensamente que às vezes me parece que isto já não é amor. 






 Al Berto

segunda-feira, 6 de março de 2017




procurar o lugar que se esquiva, habituar-me à contínua fuga do mundo, 
permitir em mim o sítio onde a palavra se apagou, repousar nele como quem encontra a serenidade na desolação, 
perder, perder cada vez mais até ao indizível, não falar, não escrever, para enfim recomeçar: 
a estrada é a espera de um nome. 







 Rui Nunes
(Foto de Laura Makabresku)

quinta-feira, 2 de março de 2017




Aqui tens as palavras
 e as rosas

 Faz uma maquette 







 Mário Cesariny

quarta-feira, 1 de março de 2017

março




Incendeio esta noite o corpo. 
Meu sangue vai coagular, compacto. Depois livre na aridez dessas 
mãos onde Março caiu como nunca vira. 
Rondo-te o fascínio. Espero o fim, o rebentar das vozes e jasmins 
ainda quentes sobre o meu ouvido.







 Isabel de Sá
 (Foto de Nishe)