quarta-feira, 29 de abril de 2020

de cara a la pared




Encosto a face à parede mais triste do quarto,
fiel guardiã do sol posto.
O coração que me deixaste é uma casa difícil de habitar.







Renata Correia Botelho


terça-feira, 28 de abril de 2020

o silêncio




Mrs. Dalloway, 
Mrs. Dalloway, 
sempre dando festas para encobrir o silêncio! 









Virginia Woolf

domingo, 26 de abril de 2020

a pele é o espelho da memória



Os dedos com que me tocou
 persistem sob a pele, onde a memória os move






 Luís Miguel Nava

sábado, 25 de abril de 2020

quinta-feira, 23 de abril de 2020

os livros



Os livros fazem fazer coisas. Divórcios, poemas. O amor também. Ele gosta de livros. Ela gosta dele. Oferece-lhe livros. Ele lê os livros que ela lhe oferece deitado no lado esquerdo da cama. Ela não lê, antes medita: Para que lado se deita o amor? Por qual narina respira melhor? Ela levanta-se do lado direito da cama e veste o robe de seda púrpura. Prepara-se para o afecto. Ele continua a ler: prefere a carne e o odor forte de certas frases. Adormece com o livro aberto a fazer o cume do coração. Com a página 63. Ela destapa-lhe o coração, lê uma frase aleatória. Rasga, amarfanha, mastiga, engole. Despe o robe de seda púrpura e veste o pijama com o cheiro a vésperas. Algodão impregnado de monotonia. Os livros fazem fazer coisas. Divórcios, poemas. O amor também.





Sandro William Junqueira

terça-feira, 21 de abril de 2020

contabilidade



venho para te cortar os dedos em moedas pequenas
 e com elas pagar ao coração o mal que me fizeste


( o pior amor é este, o que já é
feito de ódio também
  
o pior amor é este, o que já é
feito de ódio também)






 valter hugo mãe

quarta-feira, 15 de abril de 2020

meu mal




Eu tenho lido em mim, sei-me de cor, 
Eu sei o nome ao meu estranho mal






 Florbela Espanca
 (Foto de Nishe)

terça-feira, 14 de abril de 2020

tenho os olhos negros de tanto assistir à noite



Escrevo-te porque não sei de ti, porque o meu lugar é demasiado certo, porque não me perco mais.
 Um leve fio do teu cabelo para me levar. Um homem disse que só se caminha andando. 
O meu caminho é o teu cabelo na minha casa. 
Os passos que deixaste para trás e que eu sigo. Que eu sigo.

 Porque o meu corpo é muito mais digno 
 agora 
 que tu lhe tocaste.






 Patricia Baltazar

sábado, 11 de abril de 2020

sexta-feira, 10 de abril de 2020

sexta feira da paixão



Há uma bênção divina 
no esquecimento






 Ana Hatherly
(Foto de Laura Makabresku)

quinta-feira, 9 de abril de 2020

recomeço



Sonia Silva


Tu nunca quiseste pertencer. 
Só à ponta da navalha. Só no fundo do 
beco, encurralado. Meu Deus, que vocação
 para o desassossego 





 Rui Pires Cabral

quarta-feira, 8 de abril de 2020

vives-me nas mãos





"todas as noites não saber 
 em que hora parar
 em que degrau de sombra
 largar o recado para o nada 
que nos queima as mãos" 





terça-feira, 7 de abril de 2020

vazio



De repente, caímos em nós, dentro de nós, e não há nada lá dentro 
 a que nos agarrarmos 






 Manuel Resende
 (Foto de Ezgi Polat)

segunda-feira, 6 de abril de 2020

da insónia



Um minuto sobre o lado esquerdo. 
Um minuto sobre o lado direito.
 Um pouco de costas,
 um segundo sobre o ventre. 
Dou voltas no vazio. 
Frio nos meus sonhos,
 frio na minha cama.
 Os ladrões de sono saquearam a minha noite, 
um deles teve pena de mim
 e deixou-me a manhã
 na mesa-de-cabeceira. 






Maram-Al-Masri

sábado, 4 de abril de 2020

silêncio



Silêncio, e depois
 Quis dizer-lhe que o amava 
 Gritá-lo

 É tudo






 Marguerite Duras
(Foto de Andrei Tarkovski)

sexta-feira, 3 de abril de 2020

ampliar-te



eras daquelas raras pessoas que não podem ser imaginadas, e isso é um excesso, a camisa de um algodão marinho, as calças de bombazina malva que adquiriam outra cor e outra geografia quando por elas passavas as mãos, tudo podia ser descrito, tudo em ti era uma interminável descrição, cada zona do corpo, cada sorriso, desenvolviam-se lentos como o acto de os dizer, na verdade isto tornava-te alucinante, sempre admiti passar a minha vida na tarefa minuciosa de explorar os teus pormenores, todas as tardes neste café, por parede um vidro com insectos nele pousados e variáveis com as estações, ampliar-te, ampliar-te nesta reconstrução, até completamente te perder 






 Rui Nunes

quarta-feira, 1 de abril de 2020

tristeza



Assemelhei-me a um xilofone de silêncio 
 A um estrondo muito forte que só se ouvia bem em silêncio. 
 Gritei: então canta! 
 Ela pegou na minha tristeza e começou a dobar. 






 Daniel Faria
(Foto de Ezgi Polat)