quinta-feira, 29 de janeiro de 2015




Lembra-te, ao menos, de mim





 Mariana Alcoforado  (Cartas)
(Foto de Nishe)

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015




as horas tão pesadas depois de te ires embora 
começarão sempre a arrastar-se cedo de mais 
as garras agarradas às cegas à cama da fome 
trazendo à tona os ossos os velhos amores
 órbitas vazias cheias em tempos de olhos como os teus
 sempre todas perguntando se será melhor cedo de mais do
 que nunca 
com a fome negra a manchar-lhes as caras
 a dizer outra vez nove dias sem nunca flutuar o amado
 nem nove meses
 nem nove vidas 





 Samuel Beckett
(Foto de Laura Makabresku)

terça-feira, 27 de janeiro de 2015




Talvez só ali - e nem ali - pudesses
 encontrar o fim dos teus dias. 

 Agradece ao nevoeiro. Poupou-te 
a vertigem e a fuga, 
deu-te apenas uma beleza agreste. 

 Dura como o som do vento. 





 Manuel de Freitas
 (Foto de Nishe)

domingo, 25 de janeiro de 2015




Duas cervejas, tantas árvores, este coração vazio





 Manuel de Freitas
 (Foto de Nishe)

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015




Que te acontece que não mais fizeste anos
 embora a mesa posta continue à tua espera
 e lá fora na estrada as amoreiras tenham outra vez 
 florido? 





 Ruy Belo
(Foto de Nishe)

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015




Esta noite o vento ceifa os bosques e
 uma raiva sacode a terra. Se a voz
 do mar chamasse pelas velas, os estreitos
 aguardariam um naufrágio. E se dissesses
 o meu nome eu morreria de amor. 
Devo, por isso, afastar-me de ti – não 
por ter medo de morrer (que é de já não
 o ter que tenho medo), mas porque a chuva 
que devora as esquinas é a única canção 
que se ouve esta noite sobre o teu silêncio. 





Maria do Rosário Pedreira

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015





Aquilo a que se costuma chamar amor é um exílio, com um postal de casa de vez em quando, eis o meu pensamento para esta noite





 Samuel Beckett
 (Foto de Nishe)

terça-feira, 20 de janeiro de 2015




Ferida que fica, após o amor, nas costas do corpo. 
Talho profundo, cheio de peixes e bocas vermelhas, 
onde o sal dói e arde o iodo, 
que tudo corre ao longo do navio,
 que deixa passar a espuma
 e tem um olho triste no meio. 
Na arte de navegar,
 como na arte do amor, 
nenhum marinheiro, nenhum capitão,
 nenhum amante, nenhum armador, 
ninguém pode evitar esta espécie de feridas, 
escoriações profundas, com o comprimento 
do corpo e a fundura do mar,
 cuja cicatriz não desaparece
 e que usamos como estigmas de passadas navegações, 
de outras travessias. Pelo número de escoriações
 do navio, sabemos o número das suas viagens;
 pelas escoriações da nossa pele, 
quantas vezes é que amámos. 





 Cristina Peri Rossi  (Trad. A.M.)
 (Foto de Laura Makabresku)

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015










Dizem 
 Aquele que tropeçou, tropeçou
 dizem 
que aquele que traiu traiu 
dizem 
que aquele que está só está só
 dizem 
que aquele que esqueceu esqueceu 
dizem
 que aquele que não está contigo 
dizem que se foi embora 
dizem que esqueceu 





 Nathan Zakh

domingo, 18 de janeiro de 2015




Arrumas os cinzeiros, o álcool da véspera,
a lâmina que quase repousou sobre
 a veia mais azul. E é tudo. 


 Sim, é demasiado tarde, eu sei. 





 Manuel de Freitas
 (Foto de Laura Makabresku)

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015




a louca atirou uma a uma
 ao rio as poucas coisas que trazia 
atirou-se também por fim
 como poderia ela
 como poderia
 como poderia ela ter-se esquecido de si 





 Bénédicte Houart
 (Foto de Nishe)

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015




a solidão, a grande solidão interior. Caminhar
em si próprio e, durante horas, não encontrar ninguém 





Al Berto

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015




As pessoas dão demasiada importância à primeira vez. 
 E a última vez? 
 Ninguém pergunta pela última vez.
 A última. 
A última de todas.
 A última das últimas. 
 A última depois da qual não há mais nenhuma. 





 Pedro Mexia
 (Foto de Nishe)

domingo, 11 de janeiro de 2015




Nos pesadelos
 os monstros às vezes temem que os olhemos de frente 
que possamos apagar-lhes a sombra 
ou acordá-los a meio da tarde 
abrindo as portadas dos seus refúgios 
deixando a luz avassaladora a cobrir-lhes o corpo 
a queimar-lhes as pupilas remanescentes 
como se fôssemos nós
 os monstros 
deles. 





 José Carlos Barros

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015




conta-me torna-me amarga
 faz-me saber mais do que sei 





 Yvette k. Centeno

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015




acreditei que talvez a poesia me 
pudesse salvar

mas não vai acontecer: está fora 
dos seus termos outra coisa que não seja
 arredondar ainda mais esta
 triste tristura 





 Miguel-Manso
 (Foto de Nishe)

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015




O vento tinha-me comido
 parte da cara e das mãos 
Chamavam-me anjo esfarrapado 
Eu aguardava 





Alejandra Pizarnik

terça-feira, 6 de janeiro de 2015



Quando ainda não sabia as palavras possíveis
 para passar entre voz e silêncio dos outros, 
tal como entre troncos das florestas mudas, 
eu falava com as nuvens que vinham 
sobre nós a cantar, de trémulas asas, 
e aspergiam os aromas de êxtase. 





 Fiama Hasse Pais Brandão
 (Foto de Nishe)

domingo, 4 de janeiro de 2015




Queres um cigarro? - pergunta ele. Aceito. Acende-mo com gentileza, embora se pudesse esperar, devido a toda esta tensão, que simplesmente me atirasse o maço de cigarros e a caixa de fósforos. Pretende ser distantemente gentil, mas a mão treme-lhe quando me estende os cigarros. Quer dar-se, dar-se para lá de qualquer expressão inóspita, da teoria masculina da força e do poder. E então ocupo-me do meu corpo. Penteio-me, calço as meias, ponho bâton. O homem folheia um livro. Coloca um disco no pick-up. E quando se vira, talvez para dizer: por favor, fica - eu levanto a cabeça e pergunto: já deixou de chover? 





 Herberto Helder

sábado, 3 de janeiro de 2015





para não morrer de espanto, para poder com isto, para não ficar só e doido, é que inventei a insignificância, as palavras 






 Raul Brandão
 (Foto de Nishe)

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015



Sacudiu o pó 
 tratou cuidadosamente a ferida do joelho 
 reuniu os bocadinhos das suas
 asas 
 colou-as com paciência 
 e pendurou-as na parede da sala 
 como recordação 




 António Pedro Pita