sexta-feira, 28 de março de 2014

Vou-me deixar ficar



Ela olhou para ele com aquela enorme vontade de chorar e depois ficou calada. 
 Nesse dia sonhou que conseguia voar. 




 Patrícia Reis

quinta-feira, 27 de março de 2014

Nada



O vento morre na minha ferida. 
A morte mendiga o meu sangue. 





Alejandra Pizarnik

quarta-feira, 26 de março de 2014

Levas-me de mansinho






Ninguém responde



Estou com a idade pousada nas mãos. 
Explico-me com dedicação aos berços fundos
 onde cada coisa dorme o seu medo de morrer.
 Há na tristeza um perigo de terminar: 
o eterno outono parece belo 
a quem perdeu todas as sementes. 
 Pergunta-se um nome e ninguém responde. 
Onde fica essa ilha a que só chegamos por naufrágio? 





 Vasco Gato
 (Foto de Laura Makabresku)

terça-feira, 25 de março de 2014

Pousado no peito



Livros que suportam tudo, até a estante 
O gozo da poesia como uma faca afiando os dedos








segunda-feira, 24 de março de 2014

Estou ausente



Não interessa se falho na tarefa, 
ao fim e ao cabo o imutável sempre
 continuará imutável, e nada 
somo ou tiro. A lua estará quieta
 despertando-me sempre. Enquanto as margens
 continuarão rasgadas pelo mar. 
O sol continuará esse implacável
 assombro. Sempre haverá uma aranha
 a vomitar cristal e seda juntos. 
Sempre haverá névoa. E continuará
 a feroz ternura das tuas mãos. 




 Amalia Bautista
 (trad. Inês Dias)

domingo, 23 de março de 2014

O tempo sobre a pele


este dia
este perverso dia
 que veio depois de ontem 





 Paulo Leminski

sábado, 22 de março de 2014

É tarde


Com o tempo na pele, o amanhã não passa de um vazio. Há uma mesa posta, um cigarro aceso e em cada sílaba, histórias por acabar. 
Como quem está de passagem, corro a cortina. Tudo o que se agarra a mim são sombras. 
Podia ter escrito sobre a tua ausência. É tarde. E com os lábios feridos não consigo dizer coisas bonitas. 





 Maria Sousa

quarta-feira, 19 de março de 2014

Coisas que poderiam parecer inúteis



Ao fazer a mala, tenho de pensar em tudo o que lá vou meter para não me esquecer de nada. Vou ao dicionário e tiro as palavras que me servirão de passaporte: o equador, uma linha de horizonte, a altitude e a latitude, um lugar de passageiro insistente. Dizem-me que não preciso de mais nada; mas continuo a encher a mala. Um pôr-do-sol para que a noite não caia tão depressa, o toque dos teus cabelos para que a minha mão os não esqueça, e aquele pássaro num jardim que nasceu nas traseiras da casa, e canta sem saber porquê. E outras coisas que poderiam parecer inúteis, mas de que vou precisar: uma frase indecisa a meio da noite, a constelação dos teus olhos quando os abres, e algumas folhas de papel onde irei escrever o que a tua ausência me vem ditar. E se me disserem que tenho excesso de peso, deixarei tudo isto em terra, e ficarei só com a tua imagem, a estrela de um sorriso triste, e o eco melancólico de um adeus 




 Nuno Judice

domingo, 16 de março de 2014

Depois do branco e deserto inverno


A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, 
 nem acredite no calendário, 
 nem possua jardim para recebê-la 




 Cecília Meireles
(Foto de Dara Scully)

sábado, 15 de março de 2014

Uma Escuridão Bonita


Era verdade, tínhamos tempo. A falta de luz também inventava mais tempo para as pessoas estarem juntas, devagar.
Para mim a falta de luz era estar ali com ela, de mãos dadas - os meus lábios na espera dos lábios dela.





 Ondjaki

quarta-feira, 12 de março de 2014

O nome da paixão



Que nome te dar? Tu és única. Tu és todas. Ou talvez nenhuma. 
Eu sou tu. Tu és eu. A outra metade de mim. 
A parte de ti que de mim ficou. A parte de mim que foi contigo. 
Ninguém me foi tão próximo. Ninguém me escapou tanto. 
Como foi que constantemente nos encontrámos e nos perdemos? 





 Manuel Alegre

terça-feira, 11 de março de 2014

Por nada


Escrevo. E pronto.
 Escrevo porque preciso,
 preciso porque estou tonto.
 Ninguém tem nada com isso.
 Escrevo porque amanhece,
 E as estrelas lá no céu
 Lembram letras no papel,
 Quando o poema me anoitece. 
A aranha tece teias. 
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas. 
Tem que ter por quê? 





 Paulo Leminski

segunda-feira, 10 de março de 2014

Diz-me tudo o que eu não sei







Geografia íntima




respiro-te devagar
 tenho medo da memória
 da música e da inclinação da garganta

suspensos os dedos 
curvos os beijos
 o teu peito podia ser um navio




 Isabel Mendes Ferreira

quinta-feira, 6 de março de 2014

Suave como o perigo



Suave como o perigo atravessaste um dia
 com a tua mão impossível a frágil meia-noite
 e a tua mão valia a minha vida, e muitas vidas
 e os teus lábios quase mudos diziam aquilo
 que era o pensamento. 
 Passei uma noite colado a ti como a uma árvore de vida
 porque eras suave como o perigo, 
como o perigo de viver de novo.




 Leopoldo María Panero

quarta-feira, 5 de março de 2014

A mão, o muro, o mundo


A mão preferida pelo silêncio
 evoca sobre o muro
 um alfabeto sem vincos 




 José Tolentino Mendonça

terça-feira, 4 de março de 2014

Talvez um dia use esse batom vermelho



Quando me levanto, não sei se estou doente ou se é só a solidão. Foram estas as tuas palavras ao balcão, entre as pessoas que entravam e saíam, e nenhuma reparava que havia alguém ali a gritar uma dor que de tão funda não se ouvia. Mal te conheço, mas depois disto é como se nos conhecessemos. Talvez um dia use esse batom vermelho, esses brincos dourados de metal barato a coroar o penteado de cabeleireiro, e no sorriso a mesma largura triste de uma distância que jamais se alcançará (será ela que nos une uma vez mais). Antes disso, vou falar-te das minhas manhãs quando me levanto. Um peso no corpo, uma morte no olhar, corredor estreito por onde os passos avançam em direcção ao copo onde dissolvo a vitamina C em água. Logo o cigarro, a primeira baforada, como se uma esperança, embora uma esperança de nada. Seguir para o banho, copo e cigarro, o espelho em frente, cercado por azulejos brancos macabros. O resto já sabes, não preciso dizê-lo. 
Somos assim dois, eu e tu. Guarda segredo. 




 Jorge Roque

domingo, 2 de março de 2014

Chove-me por dentro





Quando vier


Sei que darei ao meu corpo os prazeres que ele me exigir. 
vou usá-lo, desgastá-lo até ao limite suportável, 
 para que a morte nada encontre em mim quando vier. 




 Al Berto