quarta-feira, 30 de setembro de 2015

terça-feira, 29 de setembro de 2015




Não entrar como turista no coração de uma mulher 
 fazendo fotos 
deixando latas de cerveja
 procurando só catedrais imensas
 e estátuas transparentes
 com a mochila cheia de mapas
 e fazendo comida rápida
 há um país
 sete cidades
 uma cordilheira e um inverno 
no coração de uma mulher
 não bebas só um copo de mar ali
 não entres no avião
 apanha o comboio da meia lua 
 não reveles ali as tuas fotos em uma hora
 se não estiver muito frio entra nu 
 não leves guarda chuva
 e sobretudo não cortes árvores no coração de uma mulher
 não costumam voltar a crescer. 






 José Maria Zonta

segunda-feira, 28 de setembro de 2015




No outro lado da noite o amor é possível 
- leva-me - 






 Alejandra Pizarnik

sexta-feira, 25 de setembro de 2015




Regulamento


Artigo 1.º Não estacione o coração em becos sem saída (demore o tempo estritamente necessário para largar despedidas ou carregar abraços)

 Artigo 2.º Se beber, com o intuito de se lavar por dentro, não conduza (é quase impossível dar banho ao pensamento sem molhar a lucidez) 

 Artigo 3.º Antes de atravessar a realidade, pare, escute e olhe, certifique-se de que não existem ilusões em contra-mão (descalce os caminhos que já não lhe servem – caminhos são sapatos que a terra nos oferece para descalçar irrealidades) 

 Artigo 4.º Não abra a boca a beijos desconhecidos (especialmente aos conhecidos que se fazem desconhecer) 

Artigo 5.º Evite adormecer em sonos usados (cansam mais do que subir o infinito a pé) 

 Artigo 6.º Seja mais sonhamor e menos sonhador (a dor não faz falta. Cria ausências) 

 Artigo 7.º Nunca faça amor em locais proibidos, salvo em legítima defesa da saudade. 





 Heduardo Kiesse

segunda-feira, 21 de setembro de 2015




entro no silêncio
 como num vestido






 Valeria Pariso
 (Foto de Cristina Coral)

sábado, 19 de setembro de 2015




A mão
 que entregava à tua
 os primeiros sinais do verão
 já não sabe o caminho ─ é como se 
em vez de aprender fosse cada vez mais 
e mais ignorante. Ou ignorar
 fosse todo o saber. 






Eugénio de Andrade

sexta-feira, 18 de setembro de 2015




Já não sei o que disse e o que disseste: 
 o verão desarruma os sentimentos. 






 Maria do Rosário Pedreira

quinta-feira, 17 de setembro de 2015




Veio do outro lado do mar 
 pronunciado pelo fogo
 e jaz nos jardins suspensos sobre a morte
 como um vómito do coração
 o nome podre de ninguém 






 António José Forte
 (Foto de Mariam Sitchinava)

sábado, 12 de setembro de 2015




Tenho sono, a dor intensa de um sono que não me adormece. 
 Nele, os vultos quase adquirem rosto, quase são o lugar da confidência.
 Choro o lugar desocupado. 






 Rui Nunes

terça-feira, 8 de setembro de 2015




algo me devora
 fumo demais
 bebo demais
 morro lentamente demais 






 Heiner Müller

segunda-feira, 7 de setembro de 2015




Da fossa dos teus anos te tirei do lameiro 
 e mergulhei-te nas águas do meu Verão
 lambi-te mãos cabelo corpo inteiro
 jurei ser minha e tua até mais não. 
 Tu deste-me a volta. Gravaste a fogo brando
 a tua marca na minha pele fina. 
 Renunciei a mim. E eis senão quando
 me começo a afastar da minha sina 
 e de mim própria. A princípio ainda a recordação
 um belo resto chamando por mim. 
 Mas nessa altura estava já dentro de ti
 de mim escondida. Bem me escondeste então. 
 Perdi-me toda em ti, de mim nem cheiro: 
 e então cuspiste-me de corpo inteiro 






 Ulla Hahn

domingo, 6 de setembro de 2015




apaga-me essa luz
 apaga-me essa luz
 apaga-me essa luz
 falsa






quinta-feira, 3 de setembro de 2015




Se tivesse carta, faria sentido comprar um automóvel; 
poderia, então, meter o sofrimento na mala e abandoná-lo num outeiro. 



(estou cansada deste blog)



Miguel Martins
 (Foto de Mariam Sitchinava)

quarta-feira, 2 de setembro de 2015




Entraste na noite
 pelo lado da solidão. 
A ela contas que sais com eles 
a eles que sais com ela. 
Encaminhas o velho Renault 4 
para certo lugar desabitado 
da cidade.
 Fizeste entrar um corpo, 
acenderam um cigarro enquanto 
procuras um retiro pelas sombras. 
Silencias a sua voz quando quer falar-te, 
com um gesto decides
 forma de desejo. 
Entraste num corpo 
pelo lado da solidão.
 Por um instante sentiste-te bem
 mas não o dizes, 
embora não consigas reprimir
 uma carícia no vidro embaciado. 
Atrás da porta que fechou deixa-te 
um rastro de perfume ignóbil
 que aspiras com deleite: 
como o símbolo o queres 
para quando queimar a claridade 
da manhã.





 José Ángel Cilleruelo
(tradução de Joaquim Manuel Magalhães)