domingo, 30 de agosto de 2020

agosto



Correr a mão
 pelo corpo que tens em tempos quedos, 
deixá-la ir pelos agostos fartos 
pelas horas de ceifas e de verão.
 Deixar que a tua pele me guie os dedos
 para chegar aos olhos e fechar-tos.






 Pedro Tamen

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

sim



Serei teu rei  teu pão  tua coisa  tua rocha
 Sim, eu estarei aqui 






 Paulo Leminski

terça-feira, 18 de agosto de 2020

chuva de estrelas




Disse-te um dia 
 que havia de dar-te uma estrela
 tão real como os sonhos
 do rio Guadalquivir 
e o perfume adolescente
 do teu corpo
 a ondular na aurora de Sevilha
 Não foste comigo a Barcelona
 ver as pesadas corolas e os mosaicos
 de La Pedrera
mas espera-me no aeroporto
 de nunca antes
 o rumor febril dos teu olhos 
onde aprendi
 que o tempo não existe 
Mas a vida pode ser
 também mágoa escura
 bem sabes Por isso te prendo
 as mãos sobre as ancas 
para não fugirmos mais um do outro
 e bebo todo o sol e afinal o tempo
 nos teus lábios. 






 Urbano Tavares Rodrigues
 (Foto de Miguel Claro
Dark Sky Alqueva)

terça-feira, 11 de agosto de 2020

blues



já ninguém morre de amor, eu uma vez
 andei lá perto, estive mesmo quase 





 Vasco Graça Moura

domingo, 9 de agosto de 2020

ficaste


mão que aperto todas as manhãs para atravessar incólume
os espaços vazios 







 Mario Cesariny

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

amor




O amor agarra no bisturi 
e antes de partir 
faz-te uma incisão na alma. 
É a sua peculiar forma de dizer adeus. 






 Gloria Bosch
(Foto de Laura Makabresku)

domingo, 2 de agosto de 2020

peças de puzzle



Vou passando às cambalhotas por este fim de tarde
 como uma dúvida à procura do seu ângulo recto.
 Organizo milhares de peças de puzzle, 
reconstruindo mundos perdidos 
com a imagem virada para baixo. 
Transformo as soluções em enigmas. 
Desloco eras, 
reavivo vulcões, 
erijo à volta de um par de mamas, 
escolas de arquitectura, 
histórias de sobrevivência, 
bocas secas, 
dentaduras postiças. 
 Do armário, chega-me 
como um hieróglifo sonoro de uma dor remota,
 o assobio intermitente
 de um rato. Nada nos une, penso,
 a não ser esta janela falsa
 na câmara de gás. 
Passo a mão pela frente molhada,
 mudo, à pressa, 
os lençóis à ilusão
e fico, outra vez, à espreita. 
Seria tanto mais fácil esperar pela eternidade 
se, ao menos, houvesse alguma mini no frigorífico. 







 Golgona Anghel
 (Foto de Monia Merlo)