terça-feira, 31 de julho de 2012

Dias assim

Uma aragem, leve depois de um dia de muito calor.
 Faltei ao emprego, não fiz os deveres,
não olhei para diante nem para o lado,
não fui ao supermercado,
não fiz nem refiz abandonos.
Fiz de acaso, de imprevisto,
não fui à janela,
não olhei o mar,
hoje, fiz todo o dia,
só isto.

Helga Moreira

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Bom dia


(...)
A noite passada um paredão ruiu
pela fresta aberta o meu peito fugiu
estavas do outro lado a tricotar janelas
vias-me em segredo ao debruçar-te nelas
cheguei-me a ti disse baixinho "Olá"
toquei-te no ombro e a marca ficou lá
o sol inteiro caiu entre os montes
e então olhaste
depois sorriste
disseste "ainda bem que voltaste".


Sérgio Godinho

sexta-feira, 27 de julho de 2012

As sílabas do silêncio


Ouço correr a noite pelos sulcos
do rosto – dir-se-ia que me chama,
que subitamente me acaricia,
a mim, que nem sequer sei ainda
como juntar as sílabas do silêncio
e sobre elas adormecer.


Eugénio de Andrade

terça-feira, 24 de julho de 2012

Previsão do estado do corpo para hoje


Como nesses dias guardados no fundo da memória
 em que fechava os olhos e achava que ninguém me via





ana p.


segunda-feira, 23 de julho de 2012

Do lado esquerdo


Vem sempre do lado esquerdo. As dores, mesmo quando são fingidas, nunca cicatrizam e é do lado esquerdo que se fixam. Delas se poderá dizer que são sinistras. Assim a mão que só para suprir carências se obriga às vezes a escrever. assim os presságios dos áugures se para norte olhavam. E as dores, repito, sobretudo aquelas cujo nome não sabes ou por cautela omites.


Albano Martins

domingo, 22 de julho de 2012

Eternamente certo


Atrasei-me ou foste tu que saíste antes da hora?
A chave é um relógio eternamente certo.
As dúvidas não cabem na fechadura


  Rosa Alice Branco

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Fala-me tu


Fala-me tu do Amor e dessa coisa esquisita que é o tempo com quatro dedos de distância entre o ardor das línguas e a asfixia dos corpos. Fala-me tu do Amor e desse desejo que arrasta a proximidade que anula todos os intervalos em pequenas existências que de tão insignificantes desaparecem numa doçura e amargura. Conta-me do constante faz e refaz, de ressuscitar e morrer, de adormecer e sonhar, do conforto da luz dos dias na realidade que nos mata. Porque do Amor também se morre e também se vive, como alimentação programada às calorias necessárias para respondermos. Encostarei a cabeça para que te ouça falar da grande cidade, cheia de perigos, que não amedrontam porque de um se protege o outro e dois são uma muralha maravilhosa em que existe a gratidão de ser ele e ela, e toda a gente e mais ninguém que esteja em sombra.


Al Berto

terça-feira, 17 de julho de 2012

Viagens secretas


Sempre coleccionei mapas, quer dizer, colecciono mapas há muito tempo, centenas de mapas em minha casa, usados, imaculados, tanto faz, nos mapas escolho os caminhos sem medo, dou voltas e voltas aos meus mundos de papel, vou a todos os lugares, sítios a que não associo uma paisagem, uma cara, uma flor, nada, terras que só existem para cumprirem o meu desejo de partir nas tardes de muito calor, estendo os mapas no chão do meu quarto, não quero saber nada sobre o mundo, nunca quis, nas tardes de muito calor passo tardes inteiras de verão a viajar


Dulce Maria Cardoso

sábado, 14 de julho de 2012

Bom dia


Toda vez que amanheço de porre, sem ter bebido, é prenuncio de tempestades. Os calos não doem com a mudança do tempo, mas meu coração dispara e o olfato fica mais aguçado que faro de perdigueiro. Nestas horas, não adianta ninguém me dizer que "viver é experimentar", porque o máximo que eu consigo é avaliar as avarias causadas pelos arpões


Leila Míccolis

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Fica



Tu dizias
eu sou o homem que queria ser o teu chão
Depois abrias as asas e voavas

Manuel Cintra (sub.a itálico)

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Estou de árvore________


não estou nada. nem cansada nem lúcida nem mátrea nem flor nem
ponte nem asa nem dia nem rasgo. nada. volume esquadro seta folha
lume esquadria em falso telhado de pétalas que o vento esmaga. nem
abraço nem água. estou. de árvore.


Isabel Mendes Ferreira in "As Lágrimas Estão todas na Garganta do Mar"

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Depoimento


De seguro,
  Posso apenas dizer que havia um muro
E que foi contra ele que arremeti
A vida inteira.
Não. Nunca o contornei.
Nunca tentei
Ultrapassá-lo de qualquer maneira.
A honra era lutar
Sem esperança de vencer.
E lutei ferozmente noite e dia,
Apesar de saber
Que quanto mais lutava mais perdia
E mais funda sentia
A dor de me perder.

  Miguel Torga

sábado, 7 de julho de 2012

Não acho bem



Procuro o maço de cigarros na carteira, fumar mata, em letras enormes, de um lado, do outro, fumar causa o envelhecimento da pele, se por um acaso não morrer, se me der para ser eterna, tenho direito a uma indemnização já que me asseguraram que fumar mata, desde quando é que todas as coisas desataram a falar, a estrada, conduza com prudência, respeite a margem de segurança, se conduzir não beba, imagino qualquer dia o hall de um prédio, se tiver uma vizinha boazona por favor não a apalpe, ou, apalpar vizinhas depende da autorização prévia do condomínio que reserva o direito de, outro aviso, quando pisar merda de cão na rua não limpe os sapatos no capacho do vizinho, procure antes os capachos de outros prédios, acendo o cigarro, hoje à tarde o banco, subscreva um plano poupança habitação, um plano poupança reforma, qualquer dia o banco, subscreva um plano infalível de assalto à mão armada, pode ainda subscrever os complementos especial perversidade, ou fuga para país tropical, a farmácia onde ontem fui comprar pingos para o nariz, já não se usa morrer de amor, use preservativo, vigie o seu colesterol, meça a sua tensão, beba um litro e meio de água por dia, evite as gorduras, faça exercício, a farmácia e o rol de conselhos, não acho bem que as estradas, os bancos, as farmácias, as roupas, tenham desatado a falar, os disparates dos falantes tradicionais chegavam


Dulce Maria Cardoso

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Cálice sagrado


(…)
Vem depressa
beber o cálice sagrado.
 Escolhi um vinho e tanto
para a noite. Depois dispo-te a pele enquanto dizes:
toma-me, este é o meu corpo: eu sou
o meu corpo a caminho do teu.
 (…)

Rosa Alice Branco

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Olhar para trás


A mulher de lot (gn, 19) olhou para trás, para ver uma última vez a cidade destruída.
e assim se tornou numa estátua de sal.
é isso que acontece quando olhamos para o passado:
ficamos petrificados.
 mesmo que o passado seja uma cidade de onde acabámos de sair.

Pedro Mexia

domingo, 1 de julho de 2012