domingo, 26 de março de 2023

sobrevivi






 

Os primeiros beijos
 ingénuos, comedidos, cautelosos,
 os corpos indecentemente jovens, 
desastrados como caranguejos, 
a cozinha suja, o pequeno-almoço na cama, 
cigarros, cerveja, pão turco e tulipas turcas. 

 Passaram mil madrugadas, 
o amor jaz na ausência, 
como se o coração perdesse a paciência, 
como se o corpo perdesse a memória, 
as flores secas, as folhas secas, as raízes secas,
  devolveu-me ao mar como se fosse um peixe, 
um peixe ferido, um peixe incapaz de sobreviver, 
pequenos homicídios sem consequências. 

 Sobrevivi, 
sei que me desmereço mas não sou o que pareço, 
agora sou toda janelas, 
da torre a sentinela, do sino a capela, da rua a cadela, 
sou o morro mais alto da favela, 
ainda quero entender o mundo, 
ainda quero conhecer o fundo,
 quero com desespero, 
quero mas não sei o que quero, 
mais feitio que defeito, 
mais feito que derrota, 
mais gaivota que proveito,
 mais ignota que perfeito,
 mais pé-direito que respeito, 
e podem chamar-me pedante,
 mas as pessoas que sabem o que querem 
nunca querem nada de interessante







 Raquel Serejo Martins
(Foto de Monia Merlo)

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