quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

essas saudades que vais tendo, são as minhas




Se eu desaparecer hoje 
E falo mesmo do meu corpo aqui tão sentado
 a escrever desde a ponta da língua à légua mais distante
 da minha vida, 
diz que compreendi. 

 Diz que sei que nada está onde é certo estar 
Que o amor súbito é a escada para o entendimento
 e come os espelhos
Diz que fui ar azul sobre campos de secura 
Estrada recta ao infinito, entre oliveiras, 
um acidente ao longe 
Que provei toda a sede quando engoli os homens 
Que queimei alegremente no ácido das palavras
 Que tombei em ricochete para que me vissem 
E que quando me viram me ergui animal 

 Diz que me viste nua, sempre 
Que corri por hospícios de olhos fechados 
 e a boca às avessas 
Que vivi mais ao alto do que em mundo plano
 e fui honesta na minha rente loucura 

 Diz que nunca esqueci a subida a um plátano 
 Que ninguém viveu no meu lugar, nem eu no de ninguém 
Que fui sim, o halo frio que enchi com esta pena pela
 minha ausência 
E que tudo o que disse foi com silêncio 

 Diz que sei, sobretudo, que ardemos juntos como ventosas,
 embora não queiras
 Que o teu corpo me serviu de andar nas pernas asmáticas 
 Que te agradeço ter-te oferecido lírios
 Que me reduziste o nojo da espécie 
Diz que eu, fui eu 

 Guarda-me este segredo que tenho largo por baixo dos cabelos:
 - quanto em mim fui que não vivi 
quanto em ti é que fui eu? 

 Mas não te preocupes, não desapareço hoje 
Quando me conheceste já eu não existia, 
e tu sabes 
que essas saudades que vais tendo,
 são as minhas. 







 Cláudia R. Sampaio
 (Foto de Anka Zhuravleva)

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