sábado, 27 de abril de 2019

diário



Faço a cama todos os dias, tento preservar a ordem do meu mundo.
 Lavo pratos, copos, talheres, quero dizer, enfio-os na máquina. 
Mantenho limpos os vidros das janelas.
 Lavo o corpo, os dentes, a roupa, do corpo e da cama, quero dizer, enfio-a na máquina, há máquinas para tudo. 
Não moro sozinha, moro com dois gatos e vaso nenhum com planta 
Compro os víveres no supermercado. 
Chego a sexta-feira com uma garrafa de vodka e duas maçãs mirradas no frigorífico. 
Já plantei couves, alfaces, árvores de fruto. 
Já escrevi cartas ridículas, tenho esta estranha mania de ser sincera. 
Tenho vergonha de erros ortográficos. 
Valorizo a etimologia. 
Tento perceber o oposto de todas as coisas, mesmo da bondade. 
Não tenho a virtude da paciência, nem sei se é virtude. 
Sou feliz só porque não trabalho num talho. 
Não como outros animais. 
Evito ter contas por pagar. 
Ando a pé mesmo quando chove. 
Preciso urgentemente de comprar um guarda-chuva novo. 
Fumo, o que não é qualidade. 
Não prescindo da mentira, o que nem sempre é defeito. 
Vou ao teatro e respiro. 
Leio os meus poetas e sufoco.
 Evito a televisão. 
Não sei o que fazer com a minha solidão.
 Sei fazer chá, o que, convenhamos, não é difícil, e compota de abóbora. 
Não me lembro da última vez que ri até às lágrimas. 
Nunca fiz uma revolução. 
Agora sei que fui feliz em Florença.
 Lembro-me de várias as vezes que fiquei de coração partido e como diz a canção: o amor só é bom se doer. 
Às vezes tenho vontade de abraçar desconhecidos.
 Garimpo a beleza das coisas, os pormenores insignificantes da vida. 
Comovo-me com a ferrugem na ferragem da varanda.
 Não tenho varanda e penso na distância entre o dia de hoje e a minha morte. 
E sei que a vida apesar de breve cansa. 






 Raquel Serejo Martins
 (Foto de Monia Melro)

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